Nervosismo, gastrite doendo, mãos frias de suor e o elevador vazio.
Chequei o papel envelhecido; há quanto tempo mesmo tinha marcado aquela consulta? Não me lembrava. Era segundo; segundo andar. O vidro, curioso levemente côncavo, distorcia minha imagem de forma sutil, mas terrivelmente perceptível como se gozasse de mim. O apito soou, lento demais afinal para apenas dois lances de concreto.
Ao sair, deparei-me com um local muito semelhante ao saguão de entrada: cadeiras cuidadosamente esfarrapadas e as paredes terrivelmente sujas, embora uma análise mais próxima, revelasse que as infiltrações que escorriam e as coloriam de verde-musgo não passavam de uma bela pintura em afresco. A segunda mão de tinta descascando era obra de um exímio pintor que, sob a luz, emulava um efeito tridimensional perfeito.
Corri o olhar pelo corredor e pessoas mil sentavam ali esperando serem chamadas. Todas, sem exceção, com o mesmo macacão surrado de cor azul assim como eu. Sentei-me em uma cadeira tão desconfortável que ficava muito claro ser aquilo obra de uma mente doentia e não do tempo de uso. Não tardou para que me chamassem. Qualquer coisa Ribeiro, fui lá eu para dentro do ambulátorio – amparando a folha da porta, um médico todo trajado de preto, dos pés às cabeças.
Ele me olhou, também dos pés a cabeça. “Vá para o quinto andar.” Fui. Fazia parte desse jogo clínico – e particularmente desse – não se opor à decisão dos médicos e aquele, eu não tinha dúvidas, soubera absorver minha dúvida apenas ao olhar certos volumes em minha roupa.
Passei pelo corredor e lá havia toda sorte de deformações pelo corpo humano; um casal em que as genitálias se formaram abaixo do nariz, um senhor que trocara os pés pelas mãos, uma criança destra cuja mão esquerda estava trocada nos pulsos. Isso, aparente. Me odiava por imaginar o que não haveria por baixo dos macacões azuis.
O elevador vazio. O espelho todo convexo. No quinto andar não havia corredor, a porta se abriu e eu, nu, estava deitado no leito de um cirurgião de vestes negras. Passei os olhos por todos seus instrumentos dispostos em uma calha de metal escuro. O mesmo metal escuro perolado que revestia aqueles utensílios cirúrgicos. Não tardou para que eu sentisse o toque morno e nauseabundo daquelas ferramentas entrando e saindo de minha pele – não necessitava de anestesias, pois o metal era tão escuro e carente de qualquer sensação, que mesmo a dor se afugentava de suas pontas.
Ao final do que quer que seja que ele tenha mexido dentro de mim e, perdido em minha náusea, não prestara atenção se consertara meu coração torto, ou meu intestino embaraçado; ao final, o homem apenas me perguntou se “queria algo mais?” ou pelo menos julguei que assim o tivesse feito, como se lesse em meus olhos bicolores a falta de algo. Não falei um pio, mas ele sorriu por sob a máscara escura. “Vá para o terceiro andar.”
O espelho, finalmente teso e reto me provocou um estranhamento: era perturbador me ver exposto assim, sem defeitos. Arrisquei não parar no terceiro e fui ao terraço. Mal tirei os olhos do painel em que eu havia praticado essa enganação tola e o espelho não estava mais lá. O que eu via refletido no aço curtido do elevador era uma forma sem face. Sem saber lidar com uma nova identidade. A sineta soou, muito mais rápido do que o normal.
Quando saí, o macacão azul não existia, estava eu, nu e só. A cama, vazia do lado esquerdo, onde Rafaela não gostava de dormir, estava remexida como se alguém a tivesse abandonado no meio da noite. Olhei para trás e não vi elevador algum, não vi, aliás, nada. Tudo que havia ali, escondido atrás do braço morto de um casaco posto na arara, era um espelho de corpo inteiro. Que Rafaela via-se nua toda noite antes de deitar-se comigo.
Ao ver-me ali, no entanto, uma silhueta magra e pontuda, não me senti belo como Rafaela deveria sentir-se; nem o espelho deve ter gostado de mimetizar meus ângulos, já que passava noites ganhando curvas de linda mulher. Não, quando olhei ali, vi apenas um homem. Cansado, igual a muitos outros. Cujo único pecado era a Doença.
Qualquer coisa Ribeiro, cujo grande pavor na vida era que lhe desvendasse nos olhos a praga que lhe comia as veias. A praga que o negativava na sociedade. Era esse, seu único pavor. Não a doença, mas o terceiro andar.
Bruno Portella
| foto de Diógenes Muniz