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Dandelion

A última estocada e o gozo. Outras tantas poucas só de raiva e fermata. Retorna do mundo físico e senta na cama - obliterado.

As pernas esticadas, dormentes - uma curiosa sensação de quase paralisia, onde se tem plena convicção do movimento das pernas, mas não as ativa por teimosia. Crê que não as domina, por puro galanteio. O ar da respiração prolonga, o sorriso de canto se aninha. Julgariam depressão, pois longe disso. Olha pela janela, olha longe da janela, mal olha pra fora da janela. Ela tenta se enrodilhar, mas não consegue. Ele nada faz, nada fez - ela tenta, mas fica cada vez mais difícil, mais alto, antigravitacional, metamorfo.

Perde o peso num átimo de suspiro e flutua lentamente, os membros todos soltos no ar, o cérebro obliterado de suas funções motoras, desligado e o corpo ganhando altura bem de pouquinho. Experimenta um tapinha na cama com a ponta dos pés quase imperceptível e se encolhe todo na parede branca que de impulso faz o corpo mergulhar no canto superior da parede verde oposta. Como um ballet aquático, os olhos fechados e a lentidão do movimento, gracioso feito um dente-de-leão no ar estagnado e ainda assim muito mais leve do que ele. Deixa o corpo solto na falta de gravidade - percebe-se deitado no gelado da parede, ativando níveis sensoriais desconhecidos. Outro impulso leve, mas suficiente, e então pra fora da janela.

A brisa frescante, os ventos calmos e compreensivos, ainda que não tivesse nada de seu peso. O ar todo em redor, feito gigante oceano, e ele afundando cada vez mais do solo - ganhando altura, sem esforço nenhum. Sem quase se movimentar. Por pura inércia é que deixa o corpo se revoltar e girar lentamente enquanto quase não se mexe - ainda por demais teimoso em admitir completo controle de seus membros.

De bocas abertas, as nuvens são todas devoradas no caminho feito algodões doces de sabores mais frescos, para um minuto depois esvaziarem os pulmões como a baforada de um cachimbo longo, de esticar e relaxar pulmões e gargantas, só pelo prazer preguiçoso, por ser básico, de respirar novamente.. Come as nuvens, como se as fumasse, para expelí-las logo depois desenhando formas não documentadas, navios de puro sorriso. Esfrega as costas no geladinho da lua, onde se suja levemente da prata refrescante, da pata da lua que o acaricia carinhosamente no caminho da espinha.

A areia de prata, fina como canela, o faz tossir um pedacinho do arco-íris boreal que lentamente o traz de volta à superfície, como um jato extintor, há tantos metros lá embaixo. Antevê já o quadrado da janela, a sua janela - as mãos seguram nos limites e ele finalmente se projeta pra dentro do quarto, o mesmo quarto: duas paredes brancas, aquela verde. Senta novamente na cama, como antes..

Ela já não está mais lá, deixou um bilhete. Ele leu com tranquilidade:

'você não gosta de mim'

Respirou longamente e finalmente voltou a si.

Bruno Portella

Comentários

  1. Sempre tem aquelas pessoas que querem estragar este momento único com conversas.

    Conto inspirador. Deu até vontade de escrever, só é uma pena estar tão tarde e eu ter que trabalhar amanhã. As horas, sempre me tolhendo a inspiração.

    Beijos, Bruno. Fazia tempo mesmo. Saudade de te ler sempre.

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