Um ônibus cheio de cheiro imundo de gente. O suor de pele sem um toque de água há dois, três, quatro ou cinco dias. Escolhi a janela, é claro; vento andorinha, paisagem rolando, vomitilhos envelhecidos e a saída de emergência dessa bruma de mau odor. Na mão segurava o troco do livro e do bilhete.
Sentou do meu lado, sempre vazio, um policial de farda cinza: esbelto, altivo de quepe bem alinhado. Metia presença e temor perto dos desempregados que breve seriam mortos por seu cacetete ao menor furto à madames, ou ejaculando nas árvores, ou qualquer coisa assim. Sentou do meu lado sem palavra e consciência, guardou sua maletinha de cabeças no compartimento de cima, recostou e olhou o vazio dos três centímetros de estofado surrado no assento da frente.
Percebi a coronha forte e ameaçadora da arma. Do meu lado. Engatilhada para seu único suspiro vivo: o do tiro - aquele que precede, talvez, a morte. Encolhi-me no canto e fechei os olhos com força, de tanto medo de tomar aquela arma e render o alinhado policial. Ou ainda melhor, meter-lhe três tentos na cabeça e sair à paisana até o motorista, esbravejando novos destinos - sempre ameaçando com a arma em riste. As pessoas gritavam em um desespero calado apenas com um quarto tiro para cima - essa fermata do capiroto.
Noutra mão, ainda apertava forte a moeda solitária do troco, como se armado duplamente, ou se necessário recarregar, estava feito com o centavo. A arma parecia me usar a seu propósito próprio. Parecia falar comigo e eu entendia-lhe perfeitamente. Cruzei o ônibus largado de proa a popa, sem adivinhar seriamente com qual intento. A cada assento vencido a arma me empurrava com força para que encarasse de mais perto cada focinho que lhe aparecia.
Tinha vida e inquiriu com mais força um rapaz extenuado; adiantou-se com veemência e o cão acudiu-se a meter-lhe as mãos na frente do rosto e o rabo entre as pernas. Ela, devassa, disparou sozinha ao forçar meu dedo para que a fizesse gozar em cima do homem esporro de bala. Desesperei-me de loucura, tamanha vontade de chupar aquele cano metálico.
O policial percebeu o ocaso delirante, arrancou seu calibre 33 e arrematou três tentos na minha cabeça que derramou sangue por todo estofado. A viagem continuou. E o único barulho, além das saraivadas, foi o solene tilintar da moeda do centavo que se despregou de minha mão pra cair entre metais do assento - rolando de cá para lá, conforme o bailado da viagem.
Bruno Portella
| foto de Diógenes Muniz