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Mostrando postagens de outubro, 2013

Um centavo

Um ônibus cheio de cheiro imundo de gente. O suor de pele sem um toque de água há dois, três, quatro ou cinco dias. Escolhi a janela, é claro; vento andorinha, paisagem rolando, vomitilhos envelhecidos e a saída de emergência dessa bruma de mau odor. Na mão segurava o troco do livro e do bilhete. Sentou do meu lado, sempre vazio, um policial de farda cinza: esbelto, altivo de quepe bem alinhado. Metia presença e temor perto dos desempregados que breve seriam mortos por seu cacetete ao menor furto à madames, ou ejaculando nas árvores, ou qualquer coisa assim. Sentou do meu lado sem palavra e consciência, guardou sua maletinha de cabeças no compartimento de cima, recostou e olhou o vazio dos três centímetros de estofado surrado no assento da frente. Percebi a coronha forte e ameaçadora da arma. Do meu lado. Engatilhada para seu único suspiro vivo: o do tiro - aquele que precede, talvez, a morte. Encolhi-me no canto e fechei os olhos com força, de tanto medo de tomar aquela a...

Cozinha da Sobrevivência: Beef ao Contra-Molho duSaussice

A cozinha é um cômodo incômodo, senão apenas incômodo de fato. O fogão, principalmente, um mistério - essa coisa do fogo e principalmente sua relação com o homem; tão pré-histórica, determinante, e ainda assim um mistério sobretudo. É verdade que complicamos (ou aperfeiçoamos) o preparo - inventamos salsas e temperos, tempos corretos, misturas rocambolescas. É raro me aventurar, mas é sempre uma aventura divertida. Por isso repetida com parcimônia - embora reze o testamento que deveria ser mais frequente. Veremos.  Dessa vez, no entanto, apresento minha mais nova criação: o Beef ao Contra-Molho duSaucisse. Aos ingredientes portanto: Um molho simples de tomate, salsichas tenras dessas que dão um ótimo cachorro-quente, um certo arroz parboilizado no saquinho e bons contra-filés pra rebater a secura dos grãos. O Arroz O arroz é esse costume tão brasileiro, parte de um certo inconsciente coletivo da culinária nacional - arrisco até mais que o feijão, que tem ma...

Delivery da Sobrevivência: Moçarela Prima

Continuando a série de degustação de Pizzas de Moçarela, segue-se agora o relato sincero de como desce a Pizza Prime, pizzaria aqui perto na Vila Mariana. Aliás, bem perto: entrega absolutamente na velocidade da luz, incapaz, inclusive, de demorar o suficiente para que a fome reclame da demora tornando a entrega um momento fartamente esperado e importante. Não, Pizza Prime chegou rápido demais. O que não é ruim, claro. Tampouco emocionante (mas era só o que faltava reclamar da comida chegar rápido demais também, não?). Ao que interessa portanto. A aparência é curiosamente mais 'suja' e traz esse misto de azeites e folículas que salpicam a face branca da moçarela - como uma ruiva que tem sardas. Mas ao contrário das ruivas de sardas, todo esse aramado de temperos e maquiagem não parecem adereçar nenhuma experiência a mais nessa pizza que carrega, senão em seu queijo modelador, ao menos nesses temperos um certo salgado desnecessariamente fora da escala para o que espe...

Nosferatu: o teatro do vampiro

O conde Orlok e sua vítima indefesa emergem no chão batido do SESC Consolação. A história clássica do vampiro terrível obcecado por essa dama, indefesa e atormentada pela besta fera que a tenta e caça na escuridão da noite. Noite essa tão bem caída no espaço escuro e opressor que sentamos diante de um balé de luzes de vela e frases delirantes de uma mulher em desespero.  Somos enclausurados em um espaço escuro, preto, sem qualquer iluminação artificial (sério, não há) e o primeiro movimento da fera - sob uma luz fraquíssima de vela abafada, é esbaforir uma nuvem de fumaça inodora com a ajuda de uma espécie de turíbulo por todo local, subjugando sua dama, a cenografia e todo o público nessa névoa claustrofóbica. A iluminação é um concerto à parte - apenas velas. O fogo das velas que os personagens tão bem controlam a certa hora de apagá-los, acendê-los ou movimentá-los - e como é forte a cena em que a dama saindo detrás de uma parede opaca faz o fogo de sua vela se espar...

Elíseo - Covarde de bom gosto

Elysium. Elíseo. Eliseu. Chame como quiser, o filme de ficção científica com alguns brasileiros muito bem destacados traz a tão batida (e necessária) crítica social do abismo que separa ricos e desfavorecidos, mas encerra em uma certa bundamolice broxante. Pena. Elysium traz o diretor de Distrito 9, Neil Blomkamp, novamente para pavimentar uma distopia que grita e estica ainda mais a profundidade entre os favorecidos e os desfavorecidos num planeta Terra decadente. E consegue criar no início da projeção uma Los Angeles tão fodida e horrível que dá agonia daquele deserto improvisado, onde até mesmo os prédios decrépitos simulam uma favela de 200 andares com fios improvisados cruzando o céu. O contraponto é uma estação-oásis em forma de estrela de Davi onde os abastados-coxinhas vivem uma vida de sonho, paz e cápsulas curativas de qualquer doença (muito bem controlado por um conselho que define o que é ou não um cidadão).  E o conflito que vai unir os dois mu...