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A Sereia Sueca

Há poucos metros, silenciosa. Daquelas que você jura que pode, a qualquer momento, puxar uma faca ou aquela arma banal e assaltar de homicida metade do andar. Mas aí você repara que metade do andar poderia fazer isso.

Aí você se dá conta (e pior, reprime) que você mesmo poderia fazer isso.

Era esta a remetente e destinatária de cartas minhas nos últimos seis meses.

Mas eu não sabia.

Arrasado, faz apenas dois dias que me dei conta. Ela, pobre coitada, não faz idéia. Aquela de textos delicados ou não, aquela de bom humor – talvez completamente diferente da realidade. Não houve tempo suficiente para acertar como era; se loura, morena, ruiva, se 50 ou 15 anos, se realmente mulher. Era passear de bruxa a lolita em semanas; como era? Leitora forçada de minha própria vil publicidade literária confessou apenas não ser delicada. Duvidei. E então, de assalto, ela está no seu andar – no meu, no caso. Quiçá trocamos palavras sem notar.

Mas ela não sabe. Eis o segredo. Ela não sabe. Seis meses e ela não faz idéia.

Existe, no ser humano, um lobo cerebral, cujo nome me foge, que adora o anonimato; a liberdade de criar sem que sua face esteja vinculada, sem que o seu passado venha à tona. É o mesmo lobo que morde o lombo dos assassinos seriais, dos psicopatas, dos loucos e dos, arrisco, prosadores – ao menos aqueles que se embriagam com a poesia, negando a sete ventos seu amor por ela. Este lobo devora o tempo.

Como um jogo mortal, me apodero da verdade com tesão e fulgor. A cada ida ao banheiro, à copa, à forra; o olho, feito espada, finca em suas costas e o restinho de cabelo loiro-sueco – buscando um detalhe fora do jogo para que eu pudesse manipular em enigmas nas cartas futuras. Lançar o verde no ar, soltar o lobo.

O perigo residia, óbvio, na reação.


Certa feita, ela, inteligente, já sabia que estava sendo observada. Seguida. E a partir do ponto em que ela sabia, não haviam mais rodeios – as cartas eram entregues direto na mesa dela. Sem remetente, claro. Ela respondia deixando na caixa de cartas do andar, no meu nome. Eu dava sempre cinco ou sete ou seis minutos depois que a via deixando algo para apanhar as contas do banco e sua bonita letra garranchosa.

Uma brincadeira de poder em que somente eu sabia quem era ela sem que ela soubesse quem era eu – a outra parte, deliciosa de si, apenas inferia. E quanto mais tempo passa, mais divertido fica, e quanto mais próximos ficamos, mais perigoso se torna. Divertido e perigoso, a combinação fatal. O absinto dos andarilhos.

Mas ela era sagaz, embora absolutamente refém de sua curiosidade – eu, refém apenas de minha covardia; evitava ser visto. Observava. Jogava no ar cores de sua roupa, elogiava certo arranjo de cabelo, jogava com as imagens do real transando as palavras da irrealidade.

Me sentia um carteiro, obcecado pela destinatária.

Na última carta, ela ameaçou: ‘café?’. Tremi. Não fui e a vi tomar o caminho da copa, indiferente. Indiferente não rola, neném. Ousei, e respondi no mesmo dia.

‘Café?’

E fui. Cinco minutos depois – mais que o necessário para a máquina processar o espresso e eu já desolado – ela entra. Sorriso maroto, olhar claro, cabelo caído, botas de floresta. O capuccino pronto; olhei pra ela com aquele sorriso que não se decide entre a timidez e a excitação. Ela avançou com um sorriso decidido entre alguma e qualquer coisa, dedou a máquina. Eu, de costas, ensaiando a próxima fala (ela tinha que ser certeira), notei o dedo frio da garota no meu costado – de cara, não entendi. De frente só, que notei a arma banal de cano curto que ela tinha em mãos.

Mediu-me com os olhos – e não demorou muito, já que não sou alto o suficiente. Desenterrou o cano curto da minha pele e deu dois tiros – o primeiro, nos olhos. Ceguei. O segundo, no peito. Calei.

Ela, delicada. Falou algo. Algo como “Dezesseis”. Eu, surdo de morto, só então notei que até então, não havia escutado sua voz. E eu já a preferia de boca fechada, silenciosa, sem contar os seus mortos.

Bruno Portella

| foto de Diógenes Muniz

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