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Meu amigo anjo

- Deus ajuda quem cedo madruga.
- Você não acredita em Deus.
- Mas acredito no ditado.
- Mas se não acredita em Deus, quem é que vai te ajudar? - ele, já impaciente, fungou.
- Ah, cale a boca, sério. São seis da manhã e você já tá me enchendo.

Mais um dia perdido no calendário branco de números idiotas de uma crença estúpida. Um copo de leite desce sua garganta como passeio de montanha-russa, batendo forte no fundo do estômago esfomeado e vazio. Enche o copo de Coca e torna a beber este ácido de sacarose ferindo prazerosamente a já maltratada garganta, por fim sente a Cola destruir o leite resultando numa peculiar sensação de estômago cheio; sente que precisava defecar – ma logo de manhã? Sentou no trono e, ainda acusado pelo sono, meteu as mãos no queixo e cagou num instante; ficando o resto da meia hora pensando junto do anjo ao seu lado, sem que pudesse ver nada.


- O que papai nos reserva pra hoje?
- Não faço idéia.
- Como não? Não foi vê-lo enquanto aquele velho me mandava putaria pra sonhar?
- E quem disse que Ele é velho? E sabe que eu não posso sair de seu lado. - o homem levantou, limpou uma vez o cu apenas.
- Então fica aí cheirando a minha merda, seu bosta.
- Vi quando colocou o pé esquerdo do lado da cama. – era tão pedante a fala andrógina daquele ar pesado que o tornava zombeteiro. Algo suficiente para inflar o ódio matinal do cagão.

- Está irritadinho por que tudo que você acreditava era besteira? – perguntou a voz calmamente o que só fazia crescer ainda mais os ódios matinais, puros e maliciosos.
- Não me enche, ainda tenho que ir trabalhar. Vai chover?
- Não.
- Ótimo.

Assaltou uma travessa do dia anterior onde mofava uma torta velha e verde que ele esquentou no forno para comer. Seguido dum copo de leite seguido dum copo de Coca, de novo. Procurou ao seu lado, olhou para os outros, tornou a olhar para todos os cantos, olhou por cima das costas através de janelas e através de universos.

- Estou aqui. – O rapaz pegou o copo vazio e tacou na direção da voz; o vidro estilhaçou-se contra a parede marcada num barulho surdo. Todo dia a mesma coisa. Todo dia no mesmo lugar.
- Desista.
- Por que não some daqui, eu não te aguento mais. – silêncio. – As pessoas me acham louco, o que ganha seu pai safado fazendo algo assim? Mande-o ir à África que lá tá cheio de pretinho precisando da ajuda dele. E eu tô aqui, cagando pro que ele quiser.
- Ofender nosso Pai, não me afastará.
- Meu verdadeiro pai morreu de tuberculose enquanto deus devia estar assistindo ao jogo do Palmeiras. E o que preciso fazer pra você ir, então?
- Morrer.

Pegou a maleta cheia de documentos, recheou a carteira de moedas e saiu pela sala ciente de que ele estava ao seu encalço: rindo de suas paranóias e de seus pensamentos, pois certamente pensava e certamente ele, anjo como era, deveria lê-los. Acalmou-se aos poucos pois a voz não era mais ouvida, fazia o habitual alarde na multidão e ele nada falava – ou, se falava, não conseguia ser ouvido. Quando a rua se alargou e as pessoas ficaram para trás, a chuva começou a cair na forma fina típica daquela terra de garoa. "Que filho da puta..."

- Como você é? – perguntou rendendo-se à curiosidade. No entanto, não deu nem tempo de prestar atenção na resposta: uma maravilhosa jovem passou à sua frente de vestido vermelho colado delineando todas suas curvas. Belos peitos e um rabo maravilhoso. Os cabelos encaracolados e ruivos, sardas no rosto e um olho levemente mel.
- Viu? – falou a voz.
- Era você? Nem fodendo. Que gostosa você. Mas não sabia que era mulher.
- Jamais disse que não fosse. Aliás, você jamais perguntou.

Já no trabalho.

- E seu Pai?
- Você tem bastante curiosidade com Ele, me parece.
- É claro, ele é o Criador. – zombou Tomás.
- Então você acredita?
- Não, sua idiota. Quando posso marcar uma consulta com ele?
- E eu que vou saber?
- Você serve pra alguma coisa?
- Não. Só pra fazer você acreditar em meu Pai. Em vosso Pai. – um discurso decorado.
- Então se evapore, vá embora, caia fora, você não é bem vinda.

Nada de anjo para o resto do dia. Ele nada falou pelo resto da tarde e, quando o expediente terminou, Tomás exibia um sorriso de orelha a orelha. Refez o caminho para sua casa e no segundo ponto de ônibus alguém o puxou pela camisa. Era a ruiva maravilhosa que tinha visto de manhã.

- Anjo?
- Eu mesma.
- De noite você não aparece assim, né? – sentindo o tesão subir embora algo lhe falava que trepar com um anjo era pecado. O que só tornava as coisas ainda mais excitantes, claro.
- Preciso ir pra casa, você sabe o caminho. – pegou o ônibus.

Entraram em casa e lá estava ela ao lado da marca funda na parede onde os copos de vidro se quebravam toda manhã; ao menos estava acertando o alvo. Comeu da torta novamente e bebeu da Coca que mais parecia vinho de tão velho e sem gás. Pegou um cigarro e tragou três em menos de dez minutos. Terminando, finalmente olhou para a bela moça de vestido vermelho.
- O que quer com tudo isso?
- Fazer com que você acredite.
- Levar pra cama pode me fazer acreditar em várias coisas, mas garanto que essa não é uma delas.
- Impressionante como os machos da sua raça só pensam em sexo.
- Alguém da família tem que fazer algo. Deus não pode, Jesus fez e foi condenado à cruz; os padres mantêm o celibato e comem criancinhas escondidos. Pelo menos nós fazemos a coisa certa sem cruz, sem criancinhas, sem porra nenhuma pra nos arrepender. – Tomás riu e o Anjo também.
- Preciso que acredite em mim e em meu Pai.
- Desista e tire a calcinha. – desafivelando o cinto da calça.

Ela obedeceu para espanto de Tomás. Teria ganhado uma meretriz da graça de Deus? Se fosse assim ele até acreditaria nele, e que bela puta tinha ele mandado; ficou imaginando quais ele não deveria ter para ele mesmo. Ah, safado. Passou a tarde fazendo amor com aquele Anjo em forma de rainha e de princesa e de imperatriz e de governanta e de Anjo e de todas as formas maravilhosas que existiam naquele mundo podre, mas cheio de detalhezinhos perfeitos como ela.

Três orgasmos depois ele fumava com o Anjo dormindo ao seu lado. Ria de satisfação: sua pica era agora sagrada. Sua porra agora viajava pelo ventre angelical daquele ser de luz mas em carne de mulher, o que nasceria dali? Um alien? Talvez não, mas certamente teria um lugar nas estrelas. Percebeu que estava disposto a acreditar, como se fosse um negócio no qual ele ganharia algo. Olhou para o lado e tornou-se mais disposto ainda para acreditar. Que. Rabo! Maravilha, nada melhor para um trabalhador de 34 anos, sem perspectivas pra vida no que tange a boceta. E eis que cai um Anjo na forma de modelo para encher sua cama de amor e tesão.

Ela acordou. Ele já decidido em ir à missa todo domingo rezar o Pai-Nosso com todo fervor, comer a hóstia e voltar pra casa onde ela estaria pelada o esperando, tinha religião melhor do que aquela? E se ela o traísse, voltaria para sua vida agnóstica sem maiores pesares. Sabia que se apaixonar por ela jamais iria acontecer, por algum motivo, era como se ela fosse sua escrava, submissa.

- Agora acredita? – perguntou ela. - Até em saci pererê. – Rezou o Pai Nosso e dormiu novamente

Bruno Portella

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