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Lolita

Lo.li.ta. Nabokov começa na boca, detalhando todos os movimentos que o músculo de sua língua faz ao pronunciar o nome de sua pequena amada (perdoa o trocadilho).

É nesse detalhamento, nessa preocupação com pedaços menos usuais que Vladimir Nabokov faz passear a sua história. Esses detalhes, veja bem, que tanto tira o foco do narrador não são esses de prateleiras (como a ode à natureza morta ou aos olhos de um alguém), mas de pedaços determinantes como os pés amarelos de ‘macaquinha’ ou a covinha que antecede o sorriso maroto de sua menina – são esses berloques que te pregam desprivinido.

A contracapa de minha versão – aquela da Folha, diga-se – resume rasteiramente como um romance ‘boy meets girl’, ora seu editor, por favor. Muito além disso, o livro é um depoimento apaixonado e sincero de um homem que, trocando logo tudo em miúdos, é um pedófilo que se apaixona perdidamente por sua enteada. E a sinopse lhe desperta automaticamente aquele sentimento de repulsa que nos habita por conta de valores morais, embora o livro e a narrativa do autor aos poucos vai destruindo essa repulsa (!) – o que não nos torna a todos pedófilos ao final do livro, pelo amor de deus, mas apenas admiradores de uma literatura gigante.


O personagem principal, o narrador Herbert Herbert (embora seu nome oscile cada vez que lhe chamam) é um europeu que, após um casamento fracassado em sua velha terra, vai à América como professor (desde o início deixando claro sua predileção por ninfetas) e é nessas circunstâncias que acaba se hospedando na casa de uma mulher, cuja filha, Lolita, torna-se alvo de seu amor incontrolável.

A simples natureza desse relacionamento é repugnante, confesso. Mas o autor é habilidoso o suficiente para não encontrar nesse sentimento primário que nos desperta o centro e a matéria-prima de sua literatura (caso fosse, o livro orbitaria sobre ele para amplificar esse sentimento, óbvio e fácil demais), mas Nabokov escolhe o caminho contrário e mais difícil, e expõe as vísceras sentimentais de seu personagem central de forma que a relação carnal entre as duas criaturas nunca se dá de maneira explícita e com detalhes abjetos – nem nunca são narradas, apenas sugeridas entre uma vírgula torta ou outra. O ponto central não é justamente naquilo que mais nos horroriza na hipotética relação criança e adulto: o sexo. Embora não negue jamais isso em seu livro/depoimento, nem nega, inclusive, que a chantageava por certos mimos de criança (você faz isso, e o papaizinho lhe dá esse presente), e também ressalta diversas vezes ao júri imaginário que se trata, sim, de um monstro que guarda em si um demônio incontrolável.

Mas em defesa do protagonista, ele não é um estuprador, como se pinta normalmente um pedófilo – perceba como fugindo de um esterótipo, Nabokov constróe um personagem doze vezes mais interessante. Veja, o livro não é sobre um caso terrível e repugnante sobre um homem que come sua filha, mas é sobre um atentado contra os bons costumes pois o réu tenta nos convencer a legitimar seu profundo desejo irrefreável por aquela criaturinha. Não no fato de que esse adulto de 40 e tantos anos ocasionalmente come sua filha de 12, mas no fato de que ele a ama – e sim, come ela vez ou outra, mas veja que isso é secundário.

Do outro lado do ringue, temos Lolita. A macaquinha do protagonista, geniosa, cheia de manias e birras – em nenhum momento o autor procura nela a simulação de prazeres adultos, pois é justamente nas reações e atitudes infantes da menina que encontra o desejo irrefreável de Humbert. E se no início ela é uma ponta tensa, provocativa e nada contrária aos desejos desse narrador (Humbert nunca tenta eximir sua própria culpa, mas vez ou outra nos faz prestar atenção sobre como essas ninfetas também não são flores que se cheiram), com o decorrer da história e da narrativa, você percebe que a garota desenvolve-se à sua maneira dominando a situação e tornando capacho aquele que, de certa forma, senta no banco dos réus como um vil aproveitador.

Lolita é um puta livro. Leitura fácil, não oferece muitos obstáculos para um leitor casual e de toda forma revela-se interessantíssimo por encontrar diversas esquinas cegas dentro do texto em que nunca sabemos o que o autor dirá sobre os pés de Lolita ou sobre os carros na estrada. Sobre o tema: leia sem preconceitos, leia sorrindo que encontrará, chocado, uma ótima história bem narrada em cima de um tema ainda marginal e difícil de digerir. Os tapas na sua cara serão curiosos, vez ou outra você que for mais fraco vai fechar o livro e respirar fundo antes de retomar a leitura, mas nunca desista (como eu desisti de Proust).

Pegue Lolita e, logo de cara, como eu fiz, diga Lolita pausadamente. Como o autor ensina no primeiro parágrafo. Lo. Li. Ta.

Um abraço na filha de vocês.

Just kidding.

Bruno Portella

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