Cinquenta anos a mil.
Sempre vi Lobão de soslaio – o cara estranho de um LP antigo de casa (que mais tarde, descobri ser o Sob o Sol de Parador), o lateral esquerdo do Saca Rolha, o mediador contundente do Debate MTV. Pouquíssimo contato realmente substancial.
Sentindo uma falta brutal de rock’n’roll brasileiro (bandas que tocam um som pesado, umas guitarras legais, umas letras bacanas), fui atrás de referencial novo e já tocado (Casa das Máquinas meu eterno predileto) – estava endiabrado de como o rock parecia ter se apequenado pras bandas de cá ou se tornado imbecis (e nem digo colorido, pois para né).
Um hobbie que eu tenho de vez em sempre é eleger uma banda, ir atrás de sua discografia completa e ouvir álbum por álbum – foi assim com o Journey (que eu já gostava), Pink Floyd (idem), Iron Maiden (ibidem) e comecei a ir atrás de brasileiros de guitarra na mão.
Primeiro, Legião. Porto-seguro, por que eu já conhecia quase tudo e já gostava, mas não era bem isso que eu queria, precisava ouvir algo nacional mais pesado (Paralamas, Titãs, Engenheiros, Capital, nada disso me interessa) – e foi nessa época que Lobão lançou sua autobiografia (que eu caguei mil vezes), o importante foi que lançou também Das Tripas Coração – curioso que só o cacete, ouvi a música e achei sensacional na primeira audição. Pensei “podíamos ter mais músicas assim, non?”.
Decidi ir atrás de duas discografias pra entrar em contato maior com o tal rock brasicional, o Barão Vermelho (que eu já gostava de algumas músicas, acho Frejat sensacional) e do próprio Lobão, de quem eu tinha gostado tanto da música nova.
Ouvi os primeiros seis primeiros álbuns do Lobo e achei absolutamente fenomenal, quase imperdoável não ter contato com aquilo antes, culminando no absolutamente perfeito Lobão Vivo – que é o melhor registro de um show nacional de rock já lançado.
| Lobão Vivo - 1990 |
Absurdado pela discografia, comecei a prestar mais atenção ao que o homem dizia e desdizia, no que fazia, no que fez…
Agonias profundas e distantes minhas ecoavam fortemente em suas opiniões – principalmente sobre a música. Nunca entendi muito bem essa punhetação em cima do Chico, Gil, Caetano, Gilberto – e toda sorte de músicos que parecem cantar sem muita vontade. Cada um gosta do que quer, e eu nunca gostei desses caras – o que é um certo pecado social – e era difícil achar alguém que, primeiro, partilhasse do mesmo sentimento que eu, e segundo (e pior), que falasse isso em alto e bom tom. Assim como é não gostar de Beatles (que eu também não gosto por motivos muito parecidos).
Encontrei um cara que tinha referências que eu já gostava e é bacana ver o alinhamento musical (eu sempre gostei da mistura que Sepultura e Angra fazem com elementos regionais, e a mescla com a Mangueira que Lobão fez é uma das coisas mais geniais que se fizeram), saber que lançou o primeiro CD do BNegão (que eu já gostava sem nunca imaginar o envolvimento dele) até mesmo seu gosto por Dr. Who (veja só!), ficções espaciais; o diabo ainda fez uma música (que nem gosto tanto, mas é admirável mesmo assim) reimaginando como seria a incrível sonata de Vinteuil (da aborrecida biografia ficcional de Proust). Enfim.
Fui atrás de todas suas entrevistas disponíveis no YouTube e encontrei no Lobão um cara realmente ímpar, diferente de sua classe, não exatamente certo, mas preciso. Não é um ídolo meu, mas um paralelo mais evidente – alguém de quem eu possa discordar e duvidar um pouco mais. Não concordo com tudo que diz, mas reconheço a importância de ter alguém falando como ele (principalmente com espaço pra dizer).
Já um bom tempo que mergulhei em suas opiniões, suas aparições, suas músicas (principalmente) e foi só agora que tirei aquele estalo Das Tripas Coração para emergir de onde surgiu essa criatura. E li sua autobiografia.
Sobre o livro
Eu não sou de ler biografias – acho que o tempo no espaço é pouquíssimo e são tantas ficções boas que eu prefiro entender a vida daqueles que me cercam a um livro sobre criaturas conhecidas. Mas nesse caso, como pontuado, não se trata de um ídolo, mas um paralelo de opiniões muito mais congruentes do que dissidentes. Eu queria ler daonde saiu aquele cara – claro que todas as suas entrevistas sobre o livro também aumentaram essa curiosidade (como assim ele comeu a mãe? como assim o Paralamas roubou a sua música? como assim jogaram latas no Rock In Rio?).
E nessa curiosidade devorei o livro.
O primeiro ponto mais latente e positivo dele é que o livro foi escrito de punho próprio – seus vícios de diálogo estão todos ali, todos – é impossível negar! E em determinados momentos, fica a impressão de alguns parágrafos terem saído direto de sua timeline de tão viciado que o texto é – o que não o torna uma obra prima (ma nem de perto), mas torna a narrativa mais visceral. O que eu acho uma escolha mais adequada para biografias – ninguém vai ser um gênio escrevendo biografias, isso não faz sentido na minha cabeça.
Também não faz sentido nenhum resenhar, opinar, criticar a vida do cara descrita ali – seria doentio. Mas é muito curioso como o melhor momento do livro é todo aquele que descreve sua infância (e suas interações com seus pais, sua mãe, seus avós – me lembrou até Proust que, só mais pra frente foi realmente citado) até o momento que ele finalmente saiu de casa para fazer parte do Vímana.
É a parte mais bem escrita do livro – e como a composição desse mini-estranho-quase-Lobão é extremamente viva e bastante condizente com todos os deslizes e julgamentos que foi passar dali em diante.
E foi justamente essa composição melhor que senti falta a partir do momento que ele começou a fazer sucesso com Ronaldo foi à Guerra, a parte da Blitz – parece que, à medida que o homem foi se tornando mais público, a profundidade do livro foi se tornando rasa até chegar à uma marola de beira de praia no final – algo como o próprio oceano.
Veja bem: nenhuma crítica do que quer que Lobão tenha feito em suas páginas, é mais a escolha narrativa que eu me pergunto se foi a ideal (e pra mim não foi), pois queria que aquela profundidade permanecesse nos momentos mais críticos – a morte de Julio Barroso, tão escancarada no primeiro momento do livro é quase uma nota de rodapé na linha natural do tempo em suas páginas, sem falar na morte de Cazuza que passou no automático ou até mesmo essa obsessão doentia pelo plágio do Herbert – que nas entrevistas é um tema espinhudo, latente e no livro ele não vibra com essa intensidade. Fiquei sentindo falta da sua própria linha de raciocínio.
Se por um lado a infância traz um sentido de ter uma profundidade maior por simplesmente desconhecermos completamente aquela página de sua vida, é justamente nos momentos que conhecemos dele que queremos o ‘lado-B’, a profundidade do que envolveu o antes e depois de uma entrevista, de um brado desobediente em cadeia nacional – seu próprio envolvimento com o PT, tão rechaçado atualmente – tudo ondas muito superficiais, rápidas, enquanto eu ficava sempre esperando o tsunami lupino.
No mais, a escrita é tão pessoal que essas falhas da pena de Lobão (gerar interesse, construir um diálogo narrativo intenso) talvez seja creditado justamente à falta de habilidade com um material tão longo – diz ele que cortou ainda 300 páginas do calhamaço final, que eu fico curiosíssimo de saber o que tinha. Colunas, tuítes, verborragias são fáceis se comparadas à tarefa absolutamente colossal de trezentas páginas – não desmerecendo a construçaõ de seus discursos que são brilhantes em muitos momentos.
Se não é perfeito, é indicado. Eu indico Lobão. Não só sua autobiografia, ou seus seis primeiros álbuns. Indico que conheçam mais sobre ele. Faz bem pra todo mundo. Assim como Raul fazia muito bem pra todo mundo, e nem todo mundo se abre pra ouvir o que ele dizia – Lobão está longe de ser Raul, mas em comum os dois tinham essa habilidade, não só de falar, mas de falar com muita sinceridade.
Gosto e sinto falta disso em todas as esferas criativas que temos – do futebol à música.
E pimba no Manifesto, que também tá fervendo pra ser lido.
Bruno Portella
