Pular para o conteúdo principal

À mesa

Quase toda a gorda família à mesa; almoço farto de domingo, como de costume. O pai levanta, tilinta a taça de cristal e diz:

- Querida família, eu e meu filho somos homossexuais.

- Filha da …


Mãe. A mãe encheu a boca e disse: ‘fi-lha-da-…’, assim mesmo, acentuada e pausadamente.

O avô, surpreso, quase perdeu sua dentadura numa exclamação arrastada e idosa, mas depois de três segundos e meio, abriu um largo sorriso e seu rosto mostrou-se triunfante e orgulhoso: era homossexual desde o terceiro ano de seu casamento e nunca teve coragem de contar a ninguém.

A avó, pobrecita, quase enfarta, mas foi quase. Pra infelicidade do vovô. Respirou fundo e arrancou de sua bolsa uma barra de crochet inacabada; olhou feio para o marido, que sacudiu os ombros de desdém. A filha do casal não podia acreditar. Num primeiro momento olhou para o pai com a descrença de quem ainda está ligando um ponto a outro, como se a "doença" e o doente não combinassem entre si. Lembrou que o filho também havia sido posto na confissão; ela esqueceu de se importar e riu do irmão como ao vê-lo tombar ou ser repreendido pelos parentes.

Os empregados correram para se esconder na cozinha. Riam baixinho, tentavam se conter: não queriam ser despedidos. Até o ar parecia remediar-se daquela família, vendo-os em tão desconfortável roupante. Apenas a mesa não vergava.

E à mesa, o frango esturricou seu pino de tempo; os vinhos conversavam entre si em outras línguas, ora francês, ora chileno. A salada refrescava-se em uma piscina de vinagre bezuntada em azeite de oliva; o óleo era para os diferenciados. A carne do boi, vermelha, endurecia de inveja do frango, posto na parte central da mesa. As velas não se agüentavam de calor, derretiam-se em castiçais de ouro que reclamavam daquele derretimento todo.

O filho não estava à mesa.

- Onde está meu filho?

Mas o filho não estava à mesa.

O filho, mais velho, aspirante a advogado pela parte da mãe, chega à mesa. O silêncio é obviamente glacial. A onda já havia passado, sobrara apenas os destroços da confissão; os empregados se debruçaram por entre as sombras da sala limpando qualquer centímetro supostamente sujo da sala. Contra aquele silêncio todo, o filho foi logo falando:

- Já sei, meu pai contou que a gente faz sexo.

- Filha da…

A avó, pobrecita, enfartou.

Bruno Portella

Postagens mais visitadas deste blog

1Q84

Pediram pra eu ler. Quem pediu, tinha crédito por ter indicado outras coisas muito boas. Daí eu li. Também já tinha ouvido falar do livro, não lembro quando. Também já tinha visto a capa, não lembro onde. Tenho usado o Goodreads pra manter um acompanhamento dos livros que voltei a ler e o primeiro caso que criei foi que cadastrei ele como IQ84 e não 1Q84. É diferente. E eu realmente achei que fosse IQ, como se tivesse a ver com quoficiente de inteligência e não com uma data. Logo no começo do livro, entendi que se passava em 1984, então o primeiro mistério eu resolvi: era 1Q84, referente ao ano. Bastava prestar melhor atenção na capa. Mas essa bobagem foi o primeiro momento de abrir a boca e falar sozinho: a, tá! Burro, você pode pensar. Mas por mim tudo bem. Troquei o registro no Goodreads pensando que eu era mesmo burro. Daí voltei pro livro. Gosto de ler livros ouvindo música instrumental. Nesse caso, como era nos anos 80 e ambientado no Japão, eu procurei uma lista de músicas adequ...

De Bolsão à Montanha da Perdição [O Começo do Desafio Éowyn]

Preciso fazer exercício. Decidi caminhar. De Bolsão até a Montanha da Perdição, como fez Frodo e o herói Samwise. Aqui vai meu diário contando a minha quilometragem real com a de Frodo e seus amigos na Terra-Média, de acordo com o registro do Desafio Éowyn [ Link ] 5 de Maio de 2025 Bruno Aniversário do amor da minha vida. O céu estava com poucas nuvens. Voltei a trabalhar depois de um feeriadão (1 de Maio na quinta, que ganchei na sexta). Recebemos a família dela pela primeira vez em São Paulo. Foi lindo demais. Cansamos horrores. Hoje eu caminhei enquanto assistia dois episódios de Dragon Ball Z, o final da batalha contra o Kid Buu. Goku usou a Genki Dama para vencer.  Fiz 1.1 quilômetros caminhando bem tranquilo Pouquíssimo, claro. Mas pra quem nunca anda, estou feliz. Cenário do Filme Basicamente saí de Bolsão, dei a volta nele como fizeram Frodo e seus amigos, e passei por um portão em direção à uma rua ao Sul do Condado. E vamos até Mordor! Um dia eu chego. Não tenho tanta pr...

Onze Anos Depois: Voltei

Depois de onze anos (aproximadamente), sinto que finalmente voltei a ler livros . Eu costumava dizer que Em Busca do Tempo Perdido , do Proust, me traumatizou ao ponto de eu nunca mais ler direito. Antes disso, eu lia muito. Pelo menos para os meus próprios padrões, estava sempre com um livro, uma página tosca fazendo anotações. Lia no ônibus, nas paradas de ônibus, às vezes na rua, parava em Centros Culturais ou cafés para ler, interrompia alguns almoços pra dar uma olhada e até perdia a hora de sono enquanto lia alguma coisa. Depois do Proust, nunca mais. E colocava a culpa no Proust. Onze anos depois, percebo que não foi só culpa do francês. A verdade é que eu gastei onze anos da minha vida lendo o Twitter. E isso ocupou minha mente mais do que deveria, assim como talvez tenha alimentado a vontade de ler que habitava em minha mente. Até então eu a saciava com livros, a partir ali de 2011, sinto que alimentei essa vontade com micro-textos pretensiosos na rede. Uma tragédia. Eu sei, h...