Sobre o livro À Sombra das Raparigas em Flor de Marcel Proust.
Enfim, o fim.
‘À sombra das raparigas em flor’ é o segundo livro dos sete que compõem a obra máxima de Proust: ‘Em busca do tempo perdido’. O livro conta a adolescência apaixonada e chata de Proust em Paris e Balbec, dois momentos bastante distintos entre si e que, no entanto, não sofrem qualquer divisão editorial (não há capítulos ou divisões do gênero). Sendo injusto e sucinto demais, eu diria que o livro fala sobre as paixões que temos (eu, leitor, e Proust, autor) e sobre como as relações humanas sofrem interferência de diversos fatores que muitas vezes não respondem diretamente ao que se entende por amor.
“Indubitavelmente, raríssimas pessoas compreendem o caráter puramente subjetivo desse fenômeno em que consiste o amor e como é o amor uma espécie de criação de um indivíduo suplementar, distinto daquele que usa no mundo o mesmo nome, e que formamos com elementos tirados na maioria de nós mesmos.” – PROUST, Marcel – p.30, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
Não tenho dúvidas de que Proust é um desses raros gênios que sabem transcrever um sentimento tão bem para as palavras como faz nesse pequeno trecho. O que fode é todo o entorno dessa pérola. Em dado momento, a leitura foi uma tortura e o livro é, num balanço geral, final e triste, um saco. A leitura se alongou por muito mais meses do que eu desejava, puramente por que o livro não me despertava o menor interesse em abri-lo. Não havia prazer em pegar o livro de manhã ou de noite e ler suas páginas longas; eu continuei mais pela teimosia de imaginar que se o largasse, estaria sendo vencido por um francesinho riquinho e asmático. Não faz meu tipo cair pra um tipo desse.
Penso que Proust valha a pena, mas é uma tortura. É aguentar, e no ato de aguentar, tornar-se mais forte. Pois há passagens que você realmente não lerá em qualquer outro autor, mas para chegar a elas, você precisa passar por provações realmente impossíveis no livro. É quase um treinamento em que você precisa sofrer, mas sofrer muito, pra conseguir sua recompensa. E quando ela vem, é um alento genial, como uma pérola estancada no meio da lama. Isto é Proust.
E esse lodo a que me refiro é toda uma pieguice em torno de uma escolha literária que já havia me aborrecido no primeiro e que quase me derramou sangue no segundo: suas referências artísticas e a sua chupa-rolice de certos artistas. Óquei, ele realmente faz referências a obras bacanas e bonitas e sim, quando quer, as descreve com incrível esmero e maestria não somente enumerando suas qualidades como fazendo a devida relação entre o referencial com o seu reflexo em sua vida. Mas é tão repetida à exaustão essa fórmula que cansa. E cansa demais. A dado momento, nos faz desistir de continuar, pois nada acontece, são apenas referências em cima de referências e um mergulho fundo demais em algo que simplesmente não agrega nada à situação do autor. Parece demais que é apenas por decoração que ele se alonga. Aí deixa de ser genial, para ser apenas piegas.
Apenas, talvez, para ilustrar essa chatice (ou simplesmente me apresentar simplista demais), eu prefiro muito mais o trecho seguinte sobre um bolo de chocolate do que todos os parágrafos sobre o poeta Bergotte e sua obra:
“E fazia-nos passar para a sala de janatar, sombria como interior de um templo asiático pintado por Rembrandt, e onde um bolo arquitetural, tão bonachão e familiar quanto imponente, parecia reinar ali à vontade como num dia qualquer, para o caso que desse na fantasia de Gilberta descoroá-lo de suas ameias de chocolate e abater suas muralhas de flancos abruptos, cozidas no forno como os bastiões do Palácio de Dario.” PROUST, Marcel – p.61, Editora Globo, tradução de Máqio Quintana
Cometerei outro pecado sobre um ponto sempre levantado quando se fala de qualquer livro. O livro de Proust é datado. Não me caiam matando, mas é. E isso não chega a ser algo ruim, uma obra estar colocada em sua época só nos faz lamentar não tê-la vivida para poder desfrutar completamente de suas referências, suas ambientações, suas motivações. O livro não reflete com tanta força como deve ter refletido em sua própria época – neste livro, somente o tema principal, o amor, reflete atualmente com bastante força, principalmente em que seus dramas são incrivelmente anacrônicos, mas infelizmente me parece que isso não se dá pelo talento do autor e muito mais pela natureza das provações do amor – que hoje são as mesmas que de 500 anos atrás. Os dramas masculinos para com as meninas/raparigas de hoje muito se assemelham com os de Proust – e as meninas são igualmente confusas tanto lá como cá.
Isso de uma forma geral.
Os dois amores por quem sofre Proust não encontram igualdade nas meninas, somente no indivíduo suplementar criado pelo autor – embora sejam realmente distintas, como se verá no decorrer do livro. É justamente nos seus dramas diante de Gilberta e, mais tarde, com as raparigas, que se encontra o grande valor deste livro. É no domínio do amor e do tempo, que Proust encanta demais. Sobre o amor, não há o que dizer, Proust sabe percorrer todo seu corpo e transportar tudo o que sente para o papel de forma clara e evidente e não é raro nos encontrarmos numa sinuca de bico em que confessamos ao vento: ‘putz, é assim mesmo’. E o seu domínio do tempo está em justamente entendê-lo de um jeito que eu jamais havia visto alguém entender.
Diz ele:
“Elástico é o tempo de que dispomos cada dia; as paixões que sentimos o dilatam, as que inspiramos o encurtam e o hábito o preenche”. PROUST, Marcel, p.148, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
Não nos é dito a idade do protagonista, em que dia se passa, em que mês, em que hora – no máximo uma estação ou outra. Mas o tempo no livro de Proust é justamente como ele define: elástico. Suas paixões dilatam o livro e é por isso que tantas passagens importantes são longas e insuportáveis (Bergotte, que eu mencionei anteriormente, é uma de suas maiores paixões literárias, natural que se alongue, para desespero do leitor). O que falar de Balbec então, cidade praiana que Proust era louco para visitar que até ficara em estado febril dias antes da viagem quando menor. E a parte de Balbec é uma das maiores provações de se passar de tão arrastado, meloso e chato que é essa paixão pela cidade. É nesse talento em não precisar o tempo e ainda assim dominá-lo, e em transpor perfeitamente os sentimentos dramáticos do amor para o papel que reside, para este sandubeiro que escreve, os maiores talentos de Proust. Justamente o que o torna genial e as pérolas emergem à superfície exatamente nesses assuntos.
Que os proustinos não me crucifiquem, mas eu só indicaria este livro àquela pessoa que morasse nas montanhas e tivesse tão somente o ar para perturbá-lo de ler. Ou para alguém que morasse no século 18, claro. É um livro campônio, não citadino. Não dá pra ler Proust no trânsito.
A falta de acontecimento é uma evidência no livro que se sustenta das divagações do autor. Entre elas, algumas maravilhosas pérolas. No final, a sensação é de que com as que colhemos, mal dá pra confeccionar um colar. Nos resta rezar para que outras venham nos demais cinco volumes.
Força e avante.
Bruno Portella
Citações anotadas:
“Maravilhava-se minha mãe de que ele fosse tão exato embora tão ocupado, tão amável embora tão relacionado, sem pensar que os “emboras” são sempre os ‘porquês’ desconhecidos…” PROUST, Marcel, p.6, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
“E, ademais, eu a amava e por conseguinte não podia vê-la sem essa perturbação, sem esse desejo de algo mais, que nos tira, junto da criatura amada, a sensação de amar.” PROUST, Marcel, p.80, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
“Sem dúvidas, os nomes são desenhistas fantasiosos que nos dão, das pessoas e lugares, um esboço tão pouco semelhante que muitas vezes sentimos uma espécie de estupor, quando temos à nossa frente, em vez do mundo imaginado, o mundo visível…” PROUST, Marcel, p.96, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
“Meus pais não estavam longe de pensar que, embora preguiçoso, eu levava a vida mais favorável ao talento, visto que o fazia no mesmo salão que um grande escritor. Mas que alguém seja dispensado de formar esse talento interiormente, por si mesmo, e o receba de outrem, é tão impossível como constituir uma boa saúde nada mais que jantando seguidamente com um médico.” PROUST, Marcel, p.122, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
“Deseja alguém determinada alegria, e faltam-lhe os meios materiais de lográ-la. ‘Triste coisa – disse La Bruyère – amar sem ser muito rico’.” PROUST, Marcel, p.157, Editora Globo, tradução de Mário Quintana
“Se pensássemos que os olhos de determinada rapariga não são mais que brilhantes globos de mica, não teríamos nenhuma avidez de conhecer a sua vida e uni-la à nossa. Mas sentimos que o que luz naquele disco refletor não é unicamente devido à sua composição material; mas que são, desconhecidas de nós, as negras sombras das idéias que aquela criatura forma relativamente aos lugares e às pessoas que conhece – grama dos hipódromos, areia dos caminhos, aonde, pedalando através dos campos e bosques, me teria arrastado aquela pequena peri, mais sedutora para mim que a do paraíso persa – as sombras também da casa aonde ela vai entrar, dos projetos que forma ou que formaram para ela; e principalmente que é ela, com os seus desejos, as suas simpatias, as suas repulsas, a sua obscura e incessante vontade.” PROUST, Marcel, p.294, Editora Globo, tradução de Mário Quintana