Texto de 2010
Fazer o seu próprio arroz pela primeira vez talvez tenha o mesmo valor moral que um homem de neandertal matando sua presa para o jantar. Claro, dispomos de regalias maiores que as de nosso elo perdido, mas o tempo praticamente anestesiou nosso instinto animal e nos enquadrou nessa sociedade fácil. Portanto, hoje fazer arroz é como caçar antigamente, de tão fácil que o mundo ficou.
Por ocasiões quaisqueres, acabei ficando uma semana inteira sozinho em casa; sobrevivi os primeiros dias com o resto de arroz que havia sobrado da última leva – jogava uns ovos nuns óleos aqui, umas salsichas outras na frigideira, fugia pra jantar com o Ronald em algumas noites, mandava embrulhar um risotão do almoço noutros dias. Até que eu tive de encarar a realidade: ou eu fazia o arroz, ou o bicho ia pegar, mermão. Passei o dia fazendo perguntas básicas ao chef Google, ele me ajudou, me indicou alguns cozinheiros.com e tudo me parecia fácil.
Pipoquei na primeira noite combinada e botei a culpa na louça, resultado: me acabei no miojo e o miojo acabou. Na noite seguinte, ontem, pra ser mais exato, não tinha por onde escapar. Ou eu acertava o arroz, ou comeria unha da mão com molho pomodoro e algumas boas salsichas.
Achei alho, peguei dois dentes (assim que chamam), tirei a casca e piquei da melhor forma possível: languida e preguiçosamente, mas me empenhei para que ficasse pequeno o bastante para que não… para que não… bom, não sei os problemas dele ficar grandão, mas o inconsciente coletivo me fez ficar bons minutos cortando aquela praga o menor possível. Feito.
O site dizia: ‘esquente bem o óleo e então jogue o alho e cebola e mecha até dourar’. Eu afastei a cebola por contusão, não sou fã da textura da cabrita, então fui só com o alho. O óleo já chiava e eu achei que era uma boa hora de dourar o dente anti-vampiro; dito e feito, despejei, a chiadeira se espalhou cozinha adentro e, entre o momento de afastar o prato de alho de volta à mesa e voltar para mexer o ensopado, me deparei com pequenos grãos negros espalhados na panela e uma chiadeira enlouquecida.
Pensei logo comigo: isso está errado, man. Não deveria ficar assim, dourado não é preto, dizia minha antiga professora de artes e mesmo eu, no alto da minha vassoura daltônica sabia distinguir uma boa cor de ouro daquele carvão na panela. Abortei missão. Desliguei o fogo e joguei a panela DIRETO na pia. Por que destaquei o ‘direto’? Simples: panela quente, óleo fervendo e água gelada não transam bem – assim foi, carrego uma marquinha charmosa na mão da queimadura dos respingos mortais.
Derrotado, voltei ao Twitter:
Óquei. ÓQUEI. Coloquei o alho pra dourar. E ele virou carvão em segundos. SOMETHINGS WRONG MAN!
Mas eu não podia dar-me por derrotado, não. Como poderia? Estava ali o arroz já limpo, a quantidade correta de água esperando ferver e um urso roncando no meu estômago. Eu não podia decepcionar semelhante mamífero e ser vencido por alguns grãos de alho e umas gotas de óleo. Não. Não o papa aqui. E dito isso, abandonei o twitter e minhas Cozinheiras de Plantão e fui picar alho de novo, já que sou tuiteiro e não desisto nunca. Descobri, da década de noventa direto para 2010 um triturador que sempre vira minha vó usando – que os céus a tenham.
Experimentei com um dente na bugiganga e ele funcionou malemá, tinha que ser recarregado a todo momento e o gatilho apertado a toda hora, até que, dois dentes de alho depois, eu parecia satisfeito. Preparei o óleo, salpiquei na mesma panela (que eu lavei devidamente com Minuano, o detergente oficial do BBB) e percebi que o líquido se acabou. Ou seja: era ou acertar, ou padecer de fome.
Acertei: o fogo baixo não matou o óleo, e o alho entrou com delicadez, dourou tranquilo (há controvérsias, por que não vi pepitas de ouro depois de um tempo, mas uns grãos estranhos e nada comestíveis, julguei ser a hora de despejar o arroz. Assim fiz. Mexi, a barulheira se amainou e tudo parecia correr perfeitamente bem. E correu até o fim. Mexi até o óleo desaparecer e taquei a água fervendo. O resto é história, corri pro abraço depois de uma boa meia hora.
Tempero no ponto, nada grudado no fundo da panela, nada de grãos queimados. Nada de nada. O puro e branco arroz brasileiro. Eis-me aqui. Enfim homem, enfim brasileiro.
Certo?
Errado! Falta 50% do restante da missão: o feijão. Avante!
Bruno Portella