Lembro de ter visto o primeiro filme de cara lavada, sem ter a menor ideia do que se tratava - e saí muitíssimo empolgado com aquele futuro distópico apresentado. Tinha um não raro abismo social entre sua capital e os demais 12 distritos (já muito visto em mil outros filmes), mas que também introduzia uma distância visual entre essas duas classes muito criativa e curiosa.
Pois saí desse segundo ainda muito chocado com a qualidade dessa série e este texto será longo.
Se considerarmos a atual constante importância da moda em nossa sociedade (vestir a marca da galera, usar os gadgets que todos usam, gostar do tênis de marca, ter o cabelo das estrelas de novela) é tragicômico notar a que ponto uma sociedade como a do filme direcionada por esses valores consegue chegar (cujo passado não me parece muito distante da nossa) - e o figurino ridículo e extravagante da capital Panem nesses Jogos Vorazes é um genuíno efeito dessa urgência em parecer único e ao mesmo tempo um vício incontrolável de ser visto (para que vejam a que ponto você é único, sem perceber que, na verdade, você é exatamente idêntico a todos os outros).
É curioso notar, por exemplo, o status que um designer de moda (como o de Katniss) adquire dentro dessa sociedade - e em se tratando de narrativa, a autora está de parabéns, pois esses pequenos detalhes (sério, nem precisaria existir e é uma coisica de nada), mas são essas coisinhas, que mal percebemos que tornam a sociedade de Panem extremamente viva e crível de existir - ainda que soe extremamente absurda vista do nosso ponto (lembremos: Panem está longe talvez apenas centenas de anos do que a nossa própria sociedade poderia vir a se tornar).
Afora com a moda, em meu último texto, aludi ao maravilhoso álbum de Roger Waters - Amused to Death, e como alguns versos de sua canção tema se aplicavam tão perfeitamente à Panem e seu modo de vida; remedaria novamente, mas a vontade seria de colar aqui um verso gigante - sugiro irem atrás da música que é uma delícia, e mui profética. Mas é chover no molhado o diagnóstico de que essa sociedade simplesmente perdeu seu próprio senso básico de respeito à vida quando o principal programa de televisão desse país é uma carnificina generalizada.
Parecido, vai. |
De novo: esse ambiente é muito, mas muito bem construído pela autora e também lindamente representado nos filmes - e de novo, pequenos detalhes bobos da projeção corroboram essa construção bem feita (repare na personagem de Effie, das mais extravagantes, que, conforme o filme avança, parece começar a se esclarecer da situação e até mesmo a dividir a aflição dos protagonistas, em que ao mesmo tempo emociona-se com uma evidente atuação malfeita na televisão de uma das tributos se apresentando ao público). Um, dois segundos na tela, mas que evidencia o estado alienável que se encontra essa capital comandante.
Esse é o panorama. E esse segundo filme começa justamente onde o primeiro se fecha: no final apoteótico salvando Katniss e Peeta e a terrível dor de cabeça que o presidente Snow precisa enfrentar uma vez que Katniss parece ter dado ao povo aquilo que ele mais tem medo: esperança. E o filme é uma busca incessante desse presidente de acabar com essa esperança, mas sem tornar Katniss uma mártir do povo.
Katniss
A Katniss é foda. Simples. No cinema infanto-juvenil (hehe), eu não consigo me lembrar de nenhuma personagem feminina que seja tão cativante quanto ela, e na literatura infanto-juvenil consigo pensar apenas de Lyra Belacqua do excelente His Dark Materials (Fronteiras do Universo).
Que personagem foda, geniosa, humana, cuzona, amedrontada, habilidosa, desaforada... e não dá pra não mencionar a encarnação absolutamente genial de Jennifer Lawrence e como ela consegue imprimir absolutamente todas essas faces que a personagem exige - do desespero de perder seus amigos ao evidente descompasso em transmitir uma paixão que exigem a todo momento dela e que ela, a muito contragosto, busca se esquivar a todo momento - tanto com Peeta como com Gale (e é muito interessante como a trama parece montar esse triângulo amoroso clássico para polarizar e confundir a protagonista quando, na verdade, ela parece simplesmente nem um pouco afim de se preocupar com isso - ainda que abra mão de alguns de seus beijos, que como espectador não consigo diferenciar bem o que é atuação com o que é real - tanto para um como para outro).
Pois que, em determinado ponto do primeiro filme, é empolgante ver a evolução que a personagem chega dentro dos próprios jogos (quando percebe que precisa interpretar o casal apaixonado, se quiser sobreviver), e é igualmente interessante notar como ao final dos jogos, ela está simplesmente destruída e no começo dessa segunda parte revela-se muito distante daquela heroína decidida para uma estrela absolutamente perdida.
Só que dessa vez, ela precisa assimilar problemas muitíssimo maiores para que, enfim, surja como o tordo da esperança de muitos - e a última cena é brilhante para exemplificar bem essa transição.
Pouquíssimas coisas me desagradam até agora na série - uma delas é o personagem Gale, que forma esse estranho e dispensável triângulo amoroso da série. Me parece raiz de uma necessidade muito imbecil do público mirim que precisa de um conflito amoroso - mas que não funciona de forma alguma na trama; o personagem é absolutamente dispensável, não agrega em nada à trama e apenas parece servir para enfraquecer a protagonista, servindo como um ponto fraco dela (e a cena de Snow mostrando a imagem dos dois se beijando como uma chantagem é emblemática disso) - ainda assim, o distanciamento de Katniss desses assuntos torna os dois envolvidos muito mais patéticos do que sua protagonista fraca.
Por que ao fim, o que queremos ver é Katniss chutando bundas na Capital (ou no Distrito 13, seja lá o que for isso) e não lutando pra escolher entre um e outro - e o desejo desse que escreve, na realidade, é que um morra (o bobo Gale) e o outro encontre alguma outra um pouco mais geniosa (como essa personagem genial que é Johanna).
Mas a falta de ingenuidade diz-me que, infelizmente, a série talvez acabe em casamento e filhos - mas torcer não custa nada. A ver, pois ainda temos o encerramento da trama e eu estou curioso demais para saber como a autora vai fechar essa história e que papel Katniss realmente terá em uma suposta rebelião.
Texto longo, mas justo com essa série que realmente é muito melhor que seus pares juvenis contemporâneos no cinema (talvez até na literatura). A ver o que se dará com tudo.
A ver.
Bruno Portella