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Machado, Capitu e Dom Casmurro

Não li Dom Casmurro para o vestibular - o que parece uma certa falha, dada a quantidade de perguntas relacionadas a isso. Pela primeira vez sentei o dedo e os olhos nas páginas da história de Bentinho e Capitu - da infância aos enterros (todos eles).


Eu já sabia que Machado é um gigante de nossa literatura por ter lido apenas Memórias Póstumas e incorporar toda a admiração coletiva que existe nesse nosso monstro. Com toda razão - aliás, penso que talvez até falte mais menções ao homem por que sua literatura é algo absolutamente único e riquíssimo. Eu digo, sem conhecer muito, que Machado é quem melhor trata e transa nossa língua portuguesa - que a mim melhor mostra a capacidade narrativa e sonora que a nossa língua pode atingir (ainda que eu implique com seus 'cousas', 'dous', 'doudos' e afins...).

Pois bem, Capitu.

Não sei a sinopse de Dom Casmurro, mas se me perguntassem eu diria que é a sobre vida de Bentinho, menino à adultice. E Capitu é a vida dele. Então você logo entende que o livro talvez seja muito mais sobre Capitu do que de qualquer outra coisa.

Capitolina - que nome. E que livro. E que pequenos capítulos.

Acho curioso como Machado escolhe focar com muito mais detalhe e tempo a infância de seu protagonista do que até mesmo os anos derradeiros de sua vida - remedando essa ideia de que a vida adulta é corrida enquanto a infância sempre nos parece mais longeva, demorada (Machado nada diz sobre isso, é reflexão que faço sozinho). Apenas pontuo por que essa diferença traz um cuidado muito maior ao retratar sua figura menor loucamente apaixonada por Capitu - sofrendo por todas as mudanças em sua vida na escala do quanto ficaria distante da menina, do que quando, já adulto, sofre de outros terrores não menores que seus exageros de menino - e é bem curioso notar até mesmo a pressa do autor em ir adiante logo com a história (meio como quando somos adultos, não?).

Esse Bentinho que, de repente, a todos conseguimos nos espelhar - pois me parece que todos tivemos uma Capitolina em nossas vidas (ou será que não?). Aquela de quem sentimos ciúmes dos olhares que distribui a terceiros, ou de quem sentimos febre por conta do sorriso, ou por quem sofremos a teatral indiferença bem como a curiosa devoção.

Capitu que é o norte do livro - e da vida de Bentinho. E a forma como Machado traz o desenvolvimento dessa paixão, os dramas em torno de opções que os distanciariam e até mesmo as pequenas brincadeiras de criança que são tão ingênuas e leves comparadas às derradeiras discussões do final, que são duras, pesadas é justamente o que torna o livro tão rico - Machado é tão mestre que, agoniado com a agonia do protagonista, em busca de ar eu fechei o livro em determinada passagem para retomar breve depois - aí que no curto capítulo seguinte o autor se desculpa e pede para que não feche o livro, 'senhora'. Esse bruxo!

Bruxo cuja literatura é surpreendente no exato significado da palavra - a sua narrativa e a sua escolha de períodos é absolutamente única - raramente você se depara com uma construção preguiçosa de sua pena; e essa riqueza da narrativa (lembremos: é a primeira pessoa que lemos) revela muito mais uma habilidade de construir a personalidade de Bentinho do que um teatro de estilo do autor. E se sinto que temos Capitus em vida, me identifico demais com os pecados confessos de Bentinho durante a trama - tanto que, à certa altura do livro, tamanha a habilidade do autor, é absolutamente compreensível quando Bentinho alude ao envenenamento de seu próprio filho (que, jogado assim, parece cena de filme te terror).

Machado é um gigante. Eu não conheço seus contos que tantos amam, nem conheço sua obra largamente - mas depois do segundo romance, é chocante como ele está muito distante no trato da nossa língua e na habilidade da narração que encontramos na literatura - dentro e fora.

Foda, Machado.

(Ps.: Depois de escrever a resenha é que fui descobrir que existe essa discussão boba 'se traiu ou não traiu'. Pois traiu. Não vi mistério algum aí e pensar o contrário me parece uma covardia do leitor em buscar redimir Capitolina - em que falte a coragem de admitir que, mesmo com a traição, não a faz pior que a 'senhora' leitora que Bentinho se refere a todo momento nem que mereça pedradas. Dóe apenas notar que muitos atribuem a genialidade de Machado nesse Dom Casmurro justamente pelo suposto mistério - como se ele houvesse deixado um peão girando na última página. Não deixou. Ele rodopia elefantes por todos os capítulos e é sinistro de triste que a atenção fique voltado à esse mero recurso da narração para expor um arco de esperança de final extremamente duro e, por que não, muito real. Assim me parece.)

Bruno Portella

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