Resenha do livro ‘Os Casamentos entre as Zonas 3, 4 e 5‘ de Doris Lessing
O segundo volume da série “Canopus em Argos: Arquivos” eleva e desafia a relação matrimonial entre dois reinos antagônicos; uma fábula sobre a existência humana e o modo sobre como somos influenciados pela convivência com alguém absolutamente diferente (e como isso é importante!)
Contado a partir da visão de um cronista do reino da Zona Três (sim, o reino se chama assim), o livro narra o casamento obrigado entre sua rainha, Al Ith., e o rei Ben Ata da Zona Quatro. Dois reinos distintos e distantes, mas fronteiriços, com a única finalidade de salvarem a fertilidade (sob todos os aspectos) de seus reinos. Um casamento ordenado por necessidades maiores (Provedores) obriga dois povos, duas culturas, dois estilos de vida a se unirem em matrimônio, mas na figura de seus soberanos.
A Zona Três representa uma cultura fértil, livre e comandada por mulheres (Doris Lessing é famosa por ser um exemplo feminista, embora não gostasse de ser vista assim), em que tudo vive em harmonia durante séculos, e mesmo a relação entre homens e mulheres, se dá de maneira bastante pacífica e comunitária (apenas como exemplo, uma mulher pode ter mais de um marido e os filhos, mais de um pai). Já a Zona Quatro é um reino guerreiro, comandado pelo bronco Ben Ata que vê na guerra a única salvação de seu reino e nas mulheres um mero objeto sexual. Mas por ordem dos Provedores (e se você já leu Shikasta, SABE que se trata de uma mente canopeana), os dois são obrigados a se casarem para salvarem a fertilidade de seus reinos (onde não nascem mais crianças, crias ou pasto e tudo passa a morrer lenta e misteriosamente).
E é com essa premissa que Doris Lessing põe dentro de uma casa construída especialmente para o casal, representantes bastante característicos de reinos completamente distintos. Os questionamentos acerca dessa estranha união e todos os seus intangíveis porquês dão lugar à uma relação descrita bonitamente por Lessing, não se deixando levar por situações crônicas de um quotidiano qualquer de um casal comum. Al Ith. e Ben Ata, Rei da Zona Quatro, são exatos símbolos de comportamento, cultura e pensamento de suas respectivas Zonas, ou reinos, e a convivência entre os dois revela-se a cada página uma verdadeira troca de experiências e antagonismos de ambas as partes – os dois se alimentando de costumes e idéias típicas de suas terras natais construindo um novo ser, completamente distinto daquele que iniciou o casamento.
Inteligente, Doris Lessing dosa com tranquilidade a narrativa para que o leitor entenda os reais intentos daquela união jamais imaginada, embora a clareza com que exprima as diferenças de cada Zona seja tão gritante, que a sensação de incompreensão de ambos os reinos refletem-se perfeitamente no leitor refém dessa imaginação brilhante da autora. Somos convidados a vivenciar a relação na sua parte mais íntima: suas percepções e pensamentos sobre o outro e sobre o ambiente em que estão e em que momento estejam.
É o trabalho de evidenciar uma sintonia interpessoal que vai além do contato corpóreo ou de golpes de vistas, mas que trabalham dentro de cada realidade e percepção para que haja uma harmonia em grupo. Mas não deixa de ser, também, o exato exemplo de como um pessoa ao se relacionar com outra completamente diferente de sua realidade, sofrerá mutações e mudará a partir da realidade e das percepções dessa outra pessoa; e Al Ith. e Ben Ata se mostrarão, ao fim do livro, personagens inadmissíveis no começo dele.
Ao contrário de Shikasta em que se lançava na missão de remontar a humanidade e expôr feridas abertas ao leitor, “O Casamento das Zonas 3, 4 e 5″ analisa de forma mais próxima a relação de pessoa à pessoa, de reino à reino e converge com seu antecessor ainda na profunda análise comportamental do ser humano e na anacrocidade da obra que talvez seja uma característica presente em toda a série.
Bruno Portella
Leia também a resenha do primeiro livro, Shikasta e do terceiro livro, As Experiências de Sirius.
Atualização de 2015:
Reli o livro esse ano no original e continua realmente fabuloso. Mais maduro, fica perceptível como o tema do livro é realmente a questão de quão profunda pode ser a influência de uma pessoa em nossas vidas (ainda mais uma que seja tão distante de nossos valores).
Não há reino perfeito que não precise aprender algo; há um debate muito interessante sobre as fronteiras; pois todos os reinos no livro basicamente lutam ou vivem para manterem seus próprios status quo sem nunca sequer olharem adiante para outros povos (exemplo: o povo da Zona Quatro são punidos caso olhem para as montanhas da Zona Três).
Enfim, é absolutamente interessante esse sub-tema das fronteiras e das influências a que somos postos e como podemos aprender muito com convivências que talvez sejam inadmissíveis.
Além disso, também é uma fábula bonitíssima. E curta. =D
Atualização de 2015:
Reli o livro esse ano no original e continua realmente fabuloso. Mais maduro, fica perceptível como o tema do livro é realmente a questão de quão profunda pode ser a influência de uma pessoa em nossas vidas (ainda mais uma que seja tão distante de nossos valores).
Não há reino perfeito que não precise aprender algo; há um debate muito interessante sobre as fronteiras; pois todos os reinos no livro basicamente lutam ou vivem para manterem seus próprios status quo sem nunca sequer olharem adiante para outros povos (exemplo: o povo da Zona Quatro são punidos caso olhem para as montanhas da Zona Três).
Enfim, é absolutamente interessante esse sub-tema das fronteiras e das influências a que somos postos e como podemos aprender muito com convivências que talvez sejam inadmissíveis.
Além disso, também é uma fábula bonitíssima. E curta. =D