Resenha de ‘O Caminho de Guermantes’, o terceiro livro da septologia ‘Em busca do tempo perdido’ de Marcel Proust
Depois de viajar a Balbec (livro 2), a avó do protagonista adoece obrigando a família a se mudar. Assim se inicia a vivência entre a alta sociedade através de jantares na casa dos Guermantes, uma tradicional família francesa (no caminho de Guermantes, portanto). Mas esse é somente o tema superficial; a grandeza do livro está, como até então, nos momentos brilhantes do autor que emerge suas paixões e seus terrores para fora como nenhum outro que já li conseguiu. Dividido em dois capítulos distintos, o livro deixa você se adaptar junto do protagonista à nova vida em Guermantes no primeiro, mas sem que haja interação alguma com a família devida. Somente no segundo capítulo é que se inicia a vivência do autor com esta família que vai, de certa forma, formar parte de seu caráter.
O livro que sucede ‘À sombra das raparigas em flor’ traz mais movimento e acontecimentos para o universo do narrador (Proust) e é, na opinião deste leitor, muito mais agradável de acompanhar do que seu antecessor, que se deparava demais com devaneios artísticos que pouco agregavam ao enredo, senão somente ao intelecto do autor. E foi assim, terminando o livro agradecendo aos céus por ter terminado, comecei o segundo com três pés atrás de medo do protagonista começar a viajar e me levar junto para o inferno novamente.
Mas pelo bem do meu tempo (que já considerei perdido durante o segundo livro), Proust alivia e explora melhor os personagens ao redor e não somente a si mesmo (fui muito criticado ao citar a pieguice que ele caia toda vez que se jogava numa dessas descrições intermináveis sobre a… sei lá, areia, por exemplo). Curado, até busquei motivos para os primeiros livros serem mais carregados e menos andantes; em uma obra de sete livros que se lança a repassar sua vida na literatura, parece natural que ele se utilize dos dois primeiros para construir todo o panorama de seu comportamento minuciosamente, expondo seus pensamentos com detalhes moleculares. Já no terceiro, em certas situações bastam um encantamento que ele emerge, ou uma palavra, ou um detalhe que ele atenta para que possamos imaginar um mar de acontecimentos dentro de sua cabeça se formando – que só é possível graças à sua construção molecular nos dois anteriores. Não é mais tão necessário todas aquelas camadas e camadas sobre sua ternura com as artes, principalmente. Nesse sentido, foi um alívio e um agrado muito grande ler este terceiro livro que além das ‘pérolas’, trouxe situações e vivências bastante novas e criativas (como sua relação com a rapariga Albertina que se renova brevemente neste livro).
Que Proust é um gênio, eu não tenho a coragem de negar. E talvez o ponto que eu realmente concorde com este títuo se dá no seu tratamento com o tempo. Não é a toa que o ‘tempo’ seja o sujeito principal do título de sua obra.
Estamos tão acostumados a livros que entregam a sequência de acontecimentos de sua história exatamente de forma linear e ‘bonitinha’, alguns até com datações e divisões temporais (mesmo aqueles que, viajando no tempo, ainda se prendem em anos, épocas e momentos para valer seu argumento). Proust não. Não nos entrega hora, dia da semana, mês, ano, época, nada como uma demarcação decente. Nos faz imaginar a tudo com dicas; explanando a situação histórica da França, ou se sai para um almoço ou jantar, ou se passa frio ou calor; não vaticina se é verão, se está de noite ou se estamos em determinado ano. Mas este disfarce do tempo não é o seu maior mérito. O maior mérito está em compreender a natureza do tempo (particularidade que já chamou minha atenção no segundo livro). Em compreender que o tempo é ‘elástico’, relativo e, portanto, ele durará de acordo com o que acontece, ou ainda mais: com o que sentimos. Um jantar pode durar trezentas páginas, enquanto um derrame, súbito, algumas linhas. Sem que um seja necessariamente mais importante que o segundo.
Seus personagens também se tornam mais maduros e muitíssimo mais interessantes do que as insossas raparigas do segundo; o casal Guermantes é de uma simpatia e diversão única, e isso só se deve ao fato das ótimas observações do protagonista que não faz mistério em puxar eventos do passado ou do futuro de determinado personagem para que nos fique claro suas reais intenções ao fazer ou dizer isso e aquilo (mestre do tempo, mais uma vez). Mas não somente eles, todos os personagens que aparecem na trama neste segundo livro garantem muito mais charme do que nos demais, ou talvez não sejam eles que tenham mudado, mas a percepção de Proust (o que é muito mais possível). Desde a sua criada Francisca até a Princesa de Parma.
Mas há certos momentos de pieguice, de canseira, de estafo – o livro é um panorama bastante claro sobre a França e um objeto de estudo para um estudante da história francesa, já que expõe fatos importantíssimos como o caso Dreyfus (divisor da sociedade francesa) e se alonga em genealogias e casas francesas – em miúdos, é um prato cheio para quem curte estudar a história da França, mas talvez pouco interessante para quem está querendo saber mais sobre as relações irônicas da Sra. de Guermantes e não quem são seus tataravós.
Sucedendo um livro arrastado e bastante truncado, este ‘O Caminho de Guermantes’ é quase um oásis para quem está no meio do deserto procurando pérolas, elas aparecem em grande quantidade, sem dúvidas, mas quando fechamos o volume, a imagem que se forma na cabeça é somente uma: o próximo vai arrebentar. Não somente por que a série vêm em uma crescente muito clara de prever que daqui pra frente as coisas ficam mais e mais interessantes, mas também por que… bem, não se põe Sodoma e Gomorra em um nome de livro de graça, não é?
Que venha!
Bruno Portella
Citações – O Caminho de Guermantes, Editora Globo, Tradução de Mario Quintana, 7ª edição:
“Na idade em que os Nomes, oferecendo-nos uma imagem do incognoscível que neles vertemos, no mesmo instante em que também designam para nós um lugar real, obrigam-nos assim a identificar a ambos, a ponto de irmos porcurar numa cidade uma alma que ela não pode conter, mas que já não temos o poder e expulsar do seu nome.” PROUST, Marcel, pg. 2.
“Tal como acontece com um grande músico (…) sua execução é de um pianista tão grande que já nem se sabe se esse artista é mesmo pianista, porque (não interpondo todo esse aparato de esforços musculares, aqui e ali coroados de brilhantes efeitos, todo esse salpicar de notas onde pelo menos o ouvinte que não sabe a que ater-se, julga encontrar o talento na sua realidade material, tangível) esse desempenho se tornou tão transparente, tão cheio do que ele interpreta que não se vê mais a ele próprio e o artista não é mais que uma janela que dá para uma obra-prima.” pg. 31
“- Vejam, é que a influência que se atribui ao meio é principalmente verdadeira quanto ao meio intelectual. Cada um é homem da sua ideia; há muito menos ideias que homens, de modo que todos os homens de uma mesma ideia são iguais. Como uma ideia nada tem de material, os homens que só materialmente estão em torno do homem de uma ideia não o modificam em coisa alguma.” pg. 78.
“Já se disse que o silêncio é uma força; em sentido completamente diferente, é mesmo uma força, e terrível, à disposição dos que são amados. Ela aumenta a ansiedade de quem espera. Nada convida tanto aproximar-se de uma criatura como aquilo que dela nos separa, e que barreira mais intransponível do que o silêncio? Já se disse também que o silêncio é um suplício, e capaz de enlouquecer a quem é coagido a ele nas prisões. Mas que suplício – maior que guardar silêncio – o de suportar o silêncio de quem se ama!” pg. 91
“Dizia isso comigo porque julgava que existe um conhecimento pelos lábios; dizia que ia conhecer o gosto daquela rosa carnal porque não havia considerado que o homem, criatura evidentemente menos rudimentar que o ouriço-do-mar ou mesmo a baleia, ainda carece no entannto de certo número de órgãos essenciais e notadamente não possui nenhum que sirva para o beijo. Esse órgão ausente, ele o substitue pelos lábios, e com isso chega talvez a um resultado um pouco mais satisfatório do que se estivesse reduzido a acariciar a bem-amada com uma defesa córnea. Mas os lábios, feitos para levar ao paladar o sabor das coisas por que são tentados, devem contentar-se, sem compreender seu erro e sem confessar sua decepção, de vagar à superfície e chocar-se ante a cerca da face impenetrável e desejada. Aliás, nesse momento, ao próprio contato da carne, os lábios, mesmo na hipótese de que se tornassem mais bem dotados, não poderiam sem dúvida degustar em maior escala o sabor que a natureza atualmente os impede de apreender, pois nessa zona desolada que não podem achar o seu alimento estão eles sozinhos, visto que o olhar e depois o olfato o abandonaram desde muito.” pg. 284