‘O Castelo’ de Franz Kafka me foi um presente de natal que, diante da fila de literatos, apenas pude ler agora nas férias de Julho de 2009 (passado). Kafka, eu já sabia, era um cara estranho – tido como louco por uns dois que me viram lendo o livro. Decidi ir atrás de sua biografia pra sacar um pouco e entender de onde vem essa estranheza que eu percebia e a loucura que dele percebiam. Tcheco e judeu, vivia em um país cristão e preste a dominar-se pela Alemanha – era, portanto, a minoria da minoria e, desde sempre, conheceu o isolamento. Não somente dessa sociedade que não o aceitava por sua ascendência, mas também dentro de casa, em que reconhecia os elementos de sua família unidos apenas por interesses maiores – seu pai, inclusive, tido como culpado pelo próprio Kafka como grande parte de seus demônios; está aí o livro ‘Carta ao Pai’ de 1919 que é, tão somente, o que o título indica: uma carta ao pai com mais de 200 páginas.
Esse isolamento todo fica muito claro em ‘A Metamorfose’ de 1912 em que um homem transforma-se bisonhamente em um inseto e, a partir de então, é completamente excluído pelos familiares, sendo atendido apenas para que não morra de fome. O livro não retrata só o isolamento do homem entre um círculo, mas também o dispositivo de defesa dessa família que, perante a aceitação social apressa-se a esconder o filho-barata para que não sejam mal-vistos.
Esse mesmo comportamento aparece com ainda mais força em ‘O Castelo’ de 1926, talvez o seu último livro e, definitivamente, inacabado. Ainda que, ao lermos, nos deparamos com dois finais – um da primeira edição e outro das posteriores quando acharam o restante em suas anotações – e nenhum dos dois ‘pontos-finais’ parece ser, realmente, uma conclusão plausível para as situações do agrimensor K.
O Castelo trata de K., um agrimensor contratado, que chega em um determinado vilarejo e lá percebe ser muito menos bem-quisto do que imaginava – exatamente isolado como o autor. Por uma série de mal-entendidos, o protagonista não está de acordo às leis senhoriais do castelo e, portanto, não pode fixar residência em canto nenhum – nem mesmo nas estalagens. Caso é, que se desenvolve algumas séries de fatos em que acaba sendo, por força de obrigação, aceito em alguns poucos cantos – sempre a contragosto dos anfitriões.
O romance de Kafka é, sem dúvidas, para dentro de si mesmo – não somente o fato de o personagem, chamado apenas de K., ser a letra de seu sobrenome, mas é também, declaradamente, seu alter-ego. Observador, está sempre atento para os detalhes dos personagens e dos locais em que está; muitas vezes, inclusive, desenvolvendo-se sempre por dentro destes detalhes que observa. Sua argumentação sempre julgada e posta à prova como deslocada por todos a quem se relata evidencia de forma tão forte esse deslocamento do personagem em uma sociedade em que não consegue se encaixar de maneira nenhuma.
A escrita de Kafka foi a que mais me empolgou e o que tenha deixado a leitura tão boa a ponto de dar vontade de escrever do mesmo jeito que ele. São esses autores que, ao ler, nos encantam tanto que dá vontade de sair escrevendo igual ou, no mínimo, ter desejado ter feito aquilo. A fala dos personagens, sempre longas, eloquentes e cheias de superlativos para traçar argumentos – principalmente a argumentação de K. que é sensacional – dá ao livro a sensação de serem todos os personagens extremamente interessantes e profundos, cheios de seus pareceres.
É um grande livro, sem dúvida – não é o tipo de livro que se lê pela história, por grandes acontecimentos, reviravoltas e toda aquela fórmula brilhante que faz de escritores quaisqueres escritores brilhantes – mas é um livro de análise, um livro de estilo, de profunda imersão dentro do autor e de seu universo escuro, cheio de nenhuma esperança.
Certa vez disseram que a literatura de Kafka é como um deserto sem abrigo. Concordo.
Bruno Portella – Junho/2009